segunda-feira, 20 de abril de 2015

Ana Vicky



Naquela época Ana Vicky vivia entre o tédio e a ansiedade. Iria completar dezessete na próxima semana e a desgastante expectativa de completar os dezoito começava a lhe afetar.  Praticamente nada se modificaria ao completar dezessete. E mesmo quando completasse dezoito previa que a independência não ocorreria da noite para o dia. Neste caso da noite do dia 27 de março para o dia 28. Mas deveria fazer algo que demarcasse ao menos para seu inconsciente que ela deveria, mesmo que lentamente, se desprender do domínio claustrofóbico do pai.  Geralmente a primeira ideia é perder a virgindade, quando esta ainda existe. No caso, grande parte das amigas de Vicky já se encontrava desvirginada. Entenda-se por grande parte: Lara e Fabiana. Porém, Vicky era uma romântica. Gostava de um visual de roqueira: sombras e lápis delineando bem os olhos, um ar misterioso. Roupas pretas e uma franja sobre os olhos. Mas era meiga. E o visual de roqueira servia como moldura que intensificava ainda mais essa meiguice. Seu quarto ainda era rosa. Ela ainda dormia com seus bichinhos de pelúcia. Falava de sexo com desenvoltura, mas temia ser machucada, justamente na ocasião que se encontrasse entregue e desguarnecida. Por isso, preferia esperar. Enquanto isso ouvia as narrativas das amigas sobre aquele dia que todos dizem ser inesquecível, para o mal ou para bem, inesquecível. Fá conta sobre sua primeira vez enfatizando a dor insuportável, com sangramento lhe descendo pelas coxas, várias toalhas molhadas de sangue. Durante alguns dias teve que usar absorvente, pois não parava de sangrar. Vicky não compreendia de onde poderia vir tanto sangue. O que exatamente se rompia. Teoricamente ela sabia, mas mesmo assim, o simples romper de um hímen para ela não seria suficiente para tanto sangramento. E quando perguntava como era não queria saber se doía ou se sangrava, a dor e o sangue pareciam coisas menores diante de tudo que estava envolvido, ela queria mesmo é que lhe dissesse algo sobre as sensações, um juízo sobre se apesar de tudo, do sangue e da dor, era bom, prazeroso. Fá disse que não gostou da primeira vez. Não, o carinha se atrapalhou, foi estúpido. E não era quem ela sonhou que fosse. Foi tudo um pouco impensado: um fim de semana na praia. Ela percebeu que em certa hora da noite os casais iam para as barracas e ela e o carinha, que era apenas um ficante sem importância, sobraram na beira do rio. Então pelo tédio aconteceu. Uma única vez, interrompida pelos gritos dela.  Não teve como fazer a segunda, não naquele fim de semana, que teve de ser abreviado.  Fá tinha apenas dezesseis, falava muito rápido e não parecia ter ressentimento, o tom era hiperbólico, principalmente quando falava da dor. Vicky chegou a pensar que estivesse inventando. Lá contou a sua primeira vez em outro tom. Para começar dizia que não doía tanto, e que sangrou apenas o suficiente para criar uma pequena mancha no lençol. Naquela mesma noite fizeram outras vezes, e já obteve bastante prazer. A sensação? Tudo parece que perde a resistência, as pernas ficam desmaterializadas, e isso causa uma leve vertigem. É bom. Lá não disse exatamente isso. Disse apenas: as pernas ficam moles, a gente acha que vai desmaiar. É bom. Vicky não estava preocupada. Não com a primeira vez. Estava apaixonada, e parece que este tema pertence à outra esfera quando se está apaixonada. Ela pensava no dia do seu aniversário, o convidaria certamente, estudavam na mesma turma, o terceiro ano C. Ela já enviara todos os sinais e ele correspondera a todos. Conversavam com recorrência, faltava apenas alguém dizer palavras que encerrassem aquela amizade mal disfarçada. Toda quinta ela fazia um curso de dança do ventre. Ela percebeu algo: que precisava aderir a um comportamento sensual. Pois notou que sua amiga abandonava o visual alternativo e se vestia de uma maneira que destacava os seios e as pernas. No outro dia ela finalmente vestiu o shortinho rosa, com um sapato alto vermelho, que alongou suas pernas, levantando sua bunda. Os shortinhos jeans estavam em voga, não causaria alvoroço entre as amigas.  Mas ele notaria: as pernas. Uma blusa mais decotada. E os lábios com batom mais chamativo. Na frente do espelho. Tirou. Não teve coragem, vestiu a calça jeans e o tênis.  E a franja caiu novamente sobre seus olhos melancólicos. O dia chegou. A irmã viria de outra cidade. Sua relação com a irmã era complexa. A irmã tem um comportamento mais agressivo quando se trata de relacionamentos. Quando adolescente se desvencilhava do pai e namorava bastante, até com certo exagero: trocando facilmente de namorados ou namorando simultaneamente mais de um. A irmã naturalmente capturava todos aqueles que lhe cercavam, incluindo aqueles pelos quais Vicky nutria um amor platônico. Por isso manteve a sensação de ter sido algumas vezes trocada pela irmã. Mas admirava a irmã e herdou alguns trejeitos dela, o gosto pela música e o estilo roqueira-meiga, por exemplo. A irmã queria ser cantora mas casou aos 19. Sem muito amor. Queria mais fugir do domínio do pai. Hoje parece um pouco resignada, o casamento parece que lhe podou uma parte da personalidade ousada. O casamento da irmã aproximou as duas, pois parece que agora a irmã perdeu o posto de rival, e pôde assumir a condição de irmã mais velha e confidente. Na noite de véspera ao aniversário as duas ficaram a madrugada praticamente inteira acordadas conversando. A irmã foi franca. E desmentiu quase tudo que a Fá e Lá disseram. Na verdade, a irmã chegou a desmistificar, talvez até com certa amargura, a ideia que ela tinha sobre sexo. Disse que sem amor, o sexo se torna um mecanismo embrutecido. Que antes do sexo tem que existir um percurso de palavras e gestos, um percurso que crie um corredor entre as almas, para que durante o impacto dos corpos elas possam estar em contato, ou para que elas se refugiassem neste corredor: um lugar intermediário, isento da fúria dos corpos. Na verdade a irmã disse algo com esse sentido, mas com estas palavras: sem carinho e amor, não rola. A irmã parecia que estava infeliz no casamento. No outro dia Vicky acordou cedo. Ela não quis vestido, não era festa de debutante. Vestiu uma saia que dialogava com a moda dos anos 50, os sapatinhos coloridos. E um casaquinho curto por cima da blusa. A irmã estava em um vestido vermelho, provocante como sempre. A festa foi em casa. Tudo muito simples. A irmã lhe fez uma surpresa: cantou-lhe uma música. Vicky chorou. Abraçaram-se e terminaram a música cantando em dueto. Depois foi ficando tarde e os convidados foram diminuindo até ficarem as amigas mais próximas e ele. Na frente de casa, os convidados lá dentro, ele entregou o presente dela, um cordãozinho com uma guitarra como pingente. Ela adorou. Houve aqueles balões de silêncio, reticências... Então disse olhando nos olhos dela, não sem hesitar, que a imagem dela invadiu todos os cantos de sua percepção, e que vivia de rompante em rompante, pois uma revolução entronou clandestinamente um tirano em seu coração e este decretou um estado de exceção onde todos trabalham sem descanso para construir monumentos gigantescos com o rosto dela, este tirano era o Amor. Bem, na verdade disse: estou gostando muito de você... penso em você toda hora... e de repente... a gente podia ficar... namorar... o que acha? Ela pensou mesmo em pedir um tempo para pensar, depois pensou em dizer simplesmente Sim, depois pensou que deveria dizer que também tinha um tirano no seu coração construindo monumentos... mas disse apenas Sim. Aproximaram-se: os rostos dançando para se encaixarem, os lábios amassados, os dentes se bateram. Afastaram-se. O primeiro beijo não foi perfeito. Algo que se tornou menor após os trezentos beijos dos primeiros meses de namoro. Na primeira semana foi aquele desassossego. Trocas de mensagens a cada instante. Os encontros eram na escola, no intervalo. Depois da aula às vezes vagavam pela cidade. Os meses passaram rápido, e logo aquele zelo e aquela vigilância constante de cada movimento deram lugar a descontração e beijos mais fluentes. As mãos também se tornaram mais livres.  No aniversário de namoro, ele que aprendia a tocar guitarra, solou para ela um trecho de Sete Cidades, da Legião Urbana. Quis retribuir. Um dia eles voltaram da escola juntos, ninguém em casa. Disse que tinha uma surpresa. Pediu para ele ficar fora do quarto e só voltar quando ela chamar. Ela chamou. Tocava uma música da Shakira no aparelho de som. E aos poucos ela foi deslizando pelo quarto com sua roupa de dança do ventre. O ventre em volteios, os pingentes tremulantes, mãos serpenteando, respirações densas pesando o ar, e uma onda de sensualidade fazendo do quarto um deserto escaldante. Passa o véu no pescoço dele, não se contém e avança sobre o ventre nu. Beijos cobrindo toda a pele descoberta. Ao retirar a parte de cima os seios disparam dois feixes de luz branca contra ele. Ela sabe que se permitir mais não poderá detê-lo. Vicky espera até o último momento para refreá-lo com um não seguro e firme, como se parasse um javali enfurecido com o dedo mindinho. Ela corre para o banheiro e volta com o uniforme, ele ainda está esbaforido na cama. Ana Victória volta para casa um tanto aliviada. Ao entrar no seu quarto sente as mãos secretas de sua mãe lhe abraçando por todos os lados. Abraça seus bichinhos de pelúcia e nada ainda está perdido. O futuro não precisa ser percorrido. Tem apenas sono e fome e nenhum desejo irá lhe ferir no momento. Na verdade disse apenas: Ah meu quartinho, e se jogou na cama.              

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