Ana Vicky
Naquela
época Ana Vicky vivia entre o tédio e a ansiedade. Iria completar dezessete na
próxima semana e a desgastante expectativa de completar os dezoito começava a
lhe afetar. Praticamente nada se modificaria
ao completar dezessete. E mesmo quando completasse dezoito previa que a
independência não ocorreria da noite para o dia. Neste caso da noite do dia 27
de março para o dia 28. Mas deveria fazer algo que demarcasse ao menos para seu
inconsciente que ela deveria, mesmo que lentamente, se desprender do domínio
claustrofóbico do pai. Geralmente a
primeira ideia é perder a virgindade, quando esta ainda existe. No caso, grande
parte das amigas de Vicky já se encontrava desvirginada. Entenda-se por grande
parte: Lara e Fabiana. Porém, Vicky era uma romântica. Gostava de um visual de
roqueira: sombras e lápis delineando bem os olhos, um ar misterioso. Roupas
pretas e uma franja sobre os olhos. Mas era meiga. E o visual de roqueira
servia como moldura que intensificava ainda mais essa meiguice. Seu quarto
ainda era rosa. Ela ainda dormia com seus bichinhos de pelúcia. Falava de sexo
com desenvoltura, mas temia ser machucada, justamente na ocasião que se
encontrasse entregue e desguarnecida. Por isso, preferia esperar. Enquanto isso
ouvia as narrativas das amigas sobre aquele dia que todos dizem ser
inesquecível, para o mal ou para bem, inesquecível. Fá conta sobre sua primeira
vez enfatizando a dor insuportável, com sangramento lhe descendo pelas coxas, várias toalhas molhadas de sangue. Durante alguns dias teve que usar
absorvente, pois não parava de sangrar. Vicky não compreendia de onde poderia
vir tanto sangue. O que exatamente se rompia. Teoricamente ela sabia, mas mesmo
assim, o simples romper de um hímen para ela não seria suficiente para tanto
sangramento. E quando perguntava como era não queria saber se doía ou se
sangrava, a dor e o sangue pareciam coisas menores diante de tudo que estava
envolvido, ela queria mesmo é que lhe dissesse algo sobre as sensações, um
juízo sobre se apesar de tudo, do sangue e da dor, era bom, prazeroso. Fá disse
que não gostou da primeira vez. Não, o carinha se atrapalhou, foi estúpido. E
não era quem ela sonhou que fosse. Foi tudo um pouco impensado: um fim de
semana na praia. Ela percebeu que em certa hora da noite os casais iam para as
barracas e ela e o carinha, que era apenas um ficante sem importância, sobraram
na beira do rio. Então pelo tédio aconteceu. Uma única vez, interrompida pelos
gritos dela. Não teve como fazer a
segunda, não naquele fim de semana, que teve de ser abreviado. Fá tinha apenas dezesseis, falava muito rápido
e não parecia ter ressentimento, o tom era hiperbólico, principalmente quando
falava da dor. Vicky chegou a pensar que estivesse inventando. Lá contou a sua
primeira vez em outro tom. Para começar dizia que não doía tanto, e que sangrou
apenas o suficiente para criar uma pequena mancha no lençol. Naquela mesma
noite fizeram outras vezes, e já obteve bastante prazer. A sensação? Tudo
parece que perde a resistência, as pernas ficam desmaterializadas, e isso causa
uma leve vertigem. É bom. Lá não disse exatamente isso. Disse apenas: as pernas
ficam moles, a gente acha que vai desmaiar. É bom. Vicky não estava preocupada.
Não com a primeira vez. Estava apaixonada, e parece que este tema pertence à
outra esfera quando se está apaixonada. Ela pensava no dia do seu aniversário,
o convidaria certamente, estudavam na mesma turma, o terceiro ano C. Ela já
enviara todos os sinais e ele correspondera a todos. Conversavam com
recorrência, faltava apenas alguém dizer palavras que encerrassem aquela
amizade mal disfarçada. Toda quinta ela fazia um curso de dança do ventre. Ela
percebeu algo: que precisava aderir a um comportamento sensual. Pois notou que
sua amiga abandonava o visual alternativo e se vestia de uma maneira que
destacava os seios e as pernas. No outro dia ela finalmente vestiu o shortinho
rosa, com um sapato alto vermelho, que alongou suas pernas, levantando sua
bunda. Os shortinhos jeans estavam em voga, não causaria alvoroço entre as amigas.
Mas ele notaria: as pernas. Uma blusa
mais decotada. E os lábios com batom mais chamativo. Na frente do espelho.
Tirou. Não teve coragem, vestiu a calça jeans e o tênis. E a franja caiu novamente sobre seus olhos
melancólicos. O dia chegou. A irmã viria de outra cidade. Sua relação com a
irmã era complexa. A irmã tem um comportamento mais agressivo quando se trata
de relacionamentos. Quando adolescente se desvencilhava do pai e namorava
bastante, até com certo exagero: trocando facilmente de namorados ou namorando
simultaneamente mais de um. A irmã naturalmente capturava todos aqueles que lhe
cercavam, incluindo aqueles pelos quais Vicky nutria um amor platônico. Por
isso manteve a sensação de ter sido algumas vezes trocada pela irmã. Mas admirava
a irmã e herdou alguns trejeitos dela, o gosto pela música e o estilo
roqueira-meiga, por exemplo. A irmã queria ser cantora mas casou aos 19. Sem
muito amor. Queria mais fugir do domínio do pai. Hoje parece um pouco
resignada, o casamento parece que lhe podou uma parte da personalidade ousada.
O casamento da irmã aproximou as duas, pois parece que agora a irmã perdeu o
posto de rival, e pôde assumir a condição de irmã mais velha e confidente. Na noite
de véspera ao aniversário as duas ficaram a madrugada praticamente inteira
acordadas conversando. A irmã foi franca. E desmentiu quase tudo que a Fá e Lá
disseram. Na verdade, a irmã chegou a desmistificar, talvez até com certa
amargura, a ideia que ela tinha sobre sexo. Disse que sem amor, o sexo se torna
um mecanismo embrutecido. Que antes do sexo tem que existir um percurso de
palavras e gestos, um percurso que crie um corredor entre as almas, para que
durante o impacto dos corpos elas possam estar em contato, ou para que elas se refugiassem
neste corredor: um lugar intermediário, isento da fúria dos corpos. Na verdade
a irmã disse algo com esse sentido, mas com estas palavras: sem carinho e amor,
não rola. A irmã parecia que estava infeliz no casamento. No outro dia Vicky
acordou cedo. Ela não quis vestido, não era festa de debutante. Vestiu uma saia
que dialogava com a moda dos anos 50, os sapatinhos coloridos. E um casaquinho
curto por cima da blusa. A irmã estava em um vestido vermelho, provocante como
sempre. A festa foi em casa. Tudo muito simples. A irmã lhe fez uma surpresa:
cantou-lhe uma música. Vicky chorou. Abraçaram-se e terminaram a música
cantando em dueto. Depois foi ficando tarde e os convidados foram diminuindo
até ficarem as amigas mais próximas e ele. Na frente de casa, os convidados lá
dentro, ele entregou o presente dela, um cordãozinho com uma guitarra como
pingente. Ela adorou. Houve aqueles balões de silêncio, reticências... Então
disse olhando nos olhos dela, não sem hesitar, que a imagem dela invadiu todos
os cantos de sua percepção, e que vivia de rompante em rompante, pois uma
revolução entronou clandestinamente um tirano em seu coração e este decretou um
estado de exceção onde todos trabalham sem descanso para construir monumentos
gigantescos com o rosto dela, este tirano era o Amor. Bem, na verdade disse:
estou gostando muito de você... penso em você toda hora... e de repente... a
gente podia ficar... namorar... o que acha? Ela pensou mesmo em pedir um tempo
para pensar, depois pensou em dizer simplesmente Sim, depois pensou que deveria
dizer que também tinha um tirano no seu coração construindo monumentos... mas
disse apenas Sim. Aproximaram-se: os rostos dançando para se encaixarem, os
lábios amassados, os dentes se bateram. Afastaram-se. O primeiro beijo não foi
perfeito. Algo que se tornou menor após os trezentos beijos dos primeiros meses
de namoro. Na primeira semana foi aquele desassossego. Trocas de mensagens a
cada instante. Os encontros eram na escola, no intervalo. Depois da aula às
vezes vagavam pela cidade. Os meses passaram rápido, e logo aquele zelo e
aquela vigilância constante de cada movimento deram lugar a descontração e
beijos mais fluentes. As mãos também se tornaram mais livres. No aniversário de namoro, ele que aprendia a tocar
guitarra, solou para ela um trecho de Sete Cidades, da Legião Urbana. Quis
retribuir. Um dia eles voltaram da escola juntos, ninguém em casa. Disse que
tinha uma surpresa. Pediu para ele ficar fora do quarto e só voltar quando ela
chamar. Ela chamou. Tocava uma música da Shakira no aparelho de som. E aos
poucos ela foi deslizando pelo quarto com sua roupa de dança do ventre. O ventre
em volteios, os pingentes tremulantes, mãos serpenteando, respirações densas
pesando o ar, e uma onda de sensualidade fazendo do quarto um deserto
escaldante. Passa o véu no pescoço dele, não se contém e avança sobre o ventre
nu. Beijos cobrindo toda a pele descoberta. Ao retirar a parte de cima os seios
disparam dois feixes de luz branca contra ele. Ela sabe que se permitir mais
não poderá detê-lo. Vicky espera até o último momento para refreá-lo com um não
seguro e firme, como se parasse um javali enfurecido com o dedo mindinho. Ela
corre para o banheiro e volta com o uniforme, ele ainda está esbaforido na
cama. Ana Victória volta para casa um tanto aliviada. Ao entrar no seu quarto
sente as mãos secretas de sua mãe lhe abraçando por todos os lados. Abraça seus
bichinhos de pelúcia e nada ainda está perdido. O futuro não precisa ser percorrido.
Tem apenas sono e fome e nenhum desejo irá lhe ferir no momento. Na verdade
disse apenas: Ah meu quartinho, e se jogou na cama.
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