sexta-feira, 24 de abril de 2015

EM BUSCA DA RIMA: O ITINERÁRIO DE MANUEL BANDEIRA






Provocativamente poderíamos dizer que Manuel Bandeira só optou pela rima por ter, em determinado momento, rejeitado-a iconoclastamente.  Ampliando nossa hipótese, diríamos também que a publicação dos primeiros livros do poeta ter sido realizada sob o regime das formas fixas, realçou o caráter deliberativo da “opção pela rima” em seus últimos livros. Queremos acreditar que nas suas primeiras obras a rima e as formas fixas foram resultantes de uma imposição, de uma relação sinônima entre a rima e a poesia, que reduzia minimamente a “opção”.  Supomos que escrever poesia no Brasil na primeira década do século XX significava aderir a determinadas formas fixas e determinadas rimas, e que o direito de escolha se restringia por um tipo de rima em detrimento de outra, e nunca por não escolher a “rima-formas-fixas”.
Com isso, a rima era um ponto de partida obrigatório, e em certo nível, automatizado e instituído. Igualmente a nudez de Eva e Adão antes do pecado, manifestava-se naturalizada, e só depois de um percurso de vestir para despir, a nudez passou a ser uma opção. Esta metáfora, emprestada de Derrida (2002), servirá como base a segunda parte deste artigo. Na qual, distinguiremos “rima instituída” e “rima buscada”. Antes, porém, seguiremos o itinerário poético de Manuel Bandeira, que ancora nossa hipótese com um testemunho escrito, em que descreve esse processo de tomada de consciência da materialidade do poema. Processo este que, para tirarmos proveito da simbologia religiosa, se caracteriza por um período de “inocência”, seguido por um de “pecado” (de libertinagem), e teve na vida de Manuel Bandeira um aspecto em parte acidental. Decorrente mais de uma inesperada longevidade do que de uma premeditação.
Na terceira parte e última, analisaremos dois poemas com a intenção de ilustrar nossa discussão teórica, que possuem o mesmo tema, “a morte”, mas apresentado com trataremos formais diferentes. O objetivo é explorar o princípio da adequação estética, de uma maneira acentuada, próxima da iconicidade.

O ITINERÁRIO

O livro Itinerário de pasárgada foi encomendado a Manuel Bandeira por Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. E deveria ser um livro de memórias, e até certo ponto esse tom é mantido. Mas depois o livro se assemelha a uma espécie de Filosofia da Composição, porém, em vez de se deter em um só poema como no texto de Edgar Allan Poe, o itinerário percorre todas as obras publicadas pelo poeta, fornecendo um testemunho esclarecedor sobre sua técnica e estilo.
O primeiro contato de Manuel Bandeira com a poesia ocorreu ainda na infância, quando entrou em contato com versos presentes em contos de fadas e histórias da carochinha. Juntaram-se a esses versos as cantigas de roda. Na escola, descobriu os clássicos portugueses, que se misturavam a influência da fala popular. Ainda no ginásio se arriscou a publicar dois sonetos, um foi rejeitado, o outro saiu nas páginas do Correio da Manhã, que saciou seu desejo de publicação, considerando encerrada a época dos versos. Para ele iria começar outra vida: a sua carreira de arquiteto. Mas adoeceu. E os versos que “fizera em menino por divertimento, principiaria então a fazê-los por necessidade, por fatalidade” (BANDEIRA, 1984, p. 28). É interessante como Manuel Bandeira reitera constantemente seus fracassos, atribuindo ao acidental e à fatalidade sua motivação para a carreira de poeta. Com isso, o malogro não foi apenas um tema recorrente em sua obra, mas um elemento constitutivo de sua técnica, pois a consciência de sua limitação o aproximou da materialidade do poema: impossibilitado de empreender voos transcendentais de fôlego, teve que assumir uma postura cada vez mais imanente diante da poesia:

Tomei consciência de que era um poeta menor; que me estaria para sempre fechado o mundo das grandes abstrações generosas; que não havia em mim aquela espécie de cadinho onde, pelo calor do sentimento, as emoções morais se transmudam em emoções estéticas: o metal precioso eu teria que sacá-lo a duras penas, ou melhor, a duras esperas, do pobre minério das minhas pequenas dores e ainda menores alegrias (BANDEIRA, 1984, p. 30).    

Esse comentário poderia ser apenas um exercício de modéstia, mas ter constatado sua condição de “poeta menor” o levou a aprender “ainda antes de conhecer a lição de Mallarmé, que em literatura a poesia está nas palavras, se faz com palavras e não com ideias e bons sentimentos...” (idem, p.30-31). Deste modo, a impossibilidade e as condições adversas levaram-no a um posicionamento mais crítico do fazer poético, como na passagem de Valéry, lembrada por Bandeira: é melhor fazer um poema medíocre em estado de lucidez, do que um grande poema em estado de transe.  Algo que nos leva a pensar que o “menor” tem um sentido semelhante ao usado por Deleuze e Guatarri (1977) ao conceituarem a literatura menor, pois a impossibilidade incentiva o aprofundamento na matéria, suspendendo os empreendimentos místicos, para extrair do osso da língua um sentido que não ultrapassa o significante, ou seja, uma literatura feita apenas de palavras, e não de significados: conceitos, ideias, bons sentimentos: “a linguagem deixa de ser representativa para tender para seus extremos ou seus limites” (p.36). Em Manuel Bandeira essa lucidez quanto ao uso das palavras fica esclarecida quando nos apresenta um exercício de observação que o ajudou a aperfeiçoar sua técnica, trata-se de analisar as “emendas” feitas por poetas consagrados em versões diferentes de um mesmo poema, como por exemplo, esta feita por Castro Alves neste dístico: “mas uma voz repete-me sombria/ terás abrigo sob a lájea fria” foi mudado para “mas uma voz responde-me sombria/ terás o sono sob a lájea fria”, em seguida Bandeira comenta a alteração: “evidentemente melhor pelo desaparecimento do eco em “fria” do i de “abrigo”, e porque “sono” evoca muito mais fortemente a ideia de morte.” (BANDEIRA, 1984, p. 32). Além dessa emenda, Manuel cita outras em que coteja duas versões de um poema, seguidas de comentários que comprovam como foi adquirindo consciência do uso certeiro da língua:

Cotejo como esses me foram ensinando a conhecer os valores plásticos e musicais dos fonemas; me foram ensinando que a poesia é feita de pequeninos nadas e que, por exemplo, uma dental em vez de uma labial pode estragar um verso (BANDEIRA, 1984, p. 32).     

Outro fator que contribuiu para a formação da técnica de Manuel Bandeira foi aprender com os “versos fracos” de grandes poetas. Sob o rigoroso sistema parnasiano era normal poemas serem considerados fracos por motivos previamente estabelecidos, como o uso de rimas pobres, ou uso de hiato, contra esses excessos maneiristas dos parnasianos, um soneto “O céu, a terra, o vento sossegado” de Camões serviu para Manuel Bandeira como fonte de inesgotáveis reflexões. No soneto vemos o uso de dois recursos abominados pelos parnasianos, como o uso do hiato “entre uma dicção e outra”, e de rimas com predominância do particípio; a respeito do uso ou não do hiato Manuel Bandeira travou uma demorada discussão, via artigos, com o crítico Machado Sobrinho em O correio de Minas de Juiz de Fora. É quase inacreditável pensar que o poeta de Libertinagem se demorasse tanto com uma questão que à vista das conquistas modernistas parece inócua, mas em 1912, época da discussão, a liberdade criativa era cerceada por uma espécie de gramática do verso, e a única forma de fugir de determinados preciosismos formais era tentando encontrar um precedente em um poeta clássico. Já no caso das rimas Bandeira faz esta reflexão:

Mas voltando ao soneto de Camões: outra coisa que aprendi nele e em outros (...) foi não desdenhar das chamadas rimas pobres. Rimas de particípios passados, por exemplo, como no transcrito soneto de Camões, onde “sossegado” rima com “repousado”, “deitado” e “nomeado”. São eles tão pertinentes ao assunto (Machado de Assis de uma feita comentara versos meus com meu pai, elogiando as rimas, que lhe pareciam “bem ligadas ao assunto”), soam tão bem dentro da tonalidade geral do poema, que ninguém se lembra que são todos particípios passados. Aprendi que a boa rima é a que traz ao ouvido uma sensação de surpresa, mas surpresa nascida não da raridade, senão de uma espécie de resolução musical, como neste verso das “Pombas”: Raia, sanguínea e fresca, a madrugada. Essa “madrugada”, onde está, é uma das rimas mais belas, mais generosas, mais euforizantes de toda a poesia de língua portuguesa. (BANDEIRA, 1984, p. 40).   

A rima para Manuel atende uma funcionalidade dentro do poema, e seu valor não pode ser definido previamente. Assim, a situação contextual é que irá atribuir o seu valor, e não “uma gramática” parnasiana da rima. Mas, o interessante é que neste momento da carreira do poeta, a saber, o período que vai de 1904 a 1917, os treze anos em que segundo Bandeira definiu sua técnica, este não vislumbra a opção de simplesmente não rimar, a pouca liberdade conquistada frente ao rigoroso sistema da época era sempre orientada pelo exemplo de algum poeta do passado: Camões, Gonçalves Dias, Antonio Nobre, dentre outros que Manuel aponta como seus influenciadores. Sabemos que as vanguardas já estouravam na Europa, enquanto aqui se discutia se o correto era acentuar “octossílabo na quarta sílaba” ou não. Na verdade, Manuel Bandeira revela, em determinada passagem, que estava bem à vontade com a métrica e com a rima: “não me lembro de problemas dentro da metrificação, que eu não tivesse resolvido prontamente”.  E sua dificuldade maior foi ter que se desfazer da métrica que saía naturalmente em seus versos. Tanto que, demorou certo tempo até conseguir fazer seu primeiro poema inteiramente em versos livres:

O verso verdadeiramente livre foi para mim uma conquista difícil. O hábito do ritmo metrificado, da construção redonda foi-me corrigindo lentamente à força que estranhos dessensibilizantes: traduções em prosa (as de Poe por Mallarmé) ... menus, receitas de cozinha, formulas de preparados para pele...(BANDEIRA, 1984, p. 44)

A liberdade plena, a consciência da liberdade só veio com Libertinagem, antes disso, Manuel Bandeira assumia uma relação de ingenuidade com a escrita, pela adesão às formas fixas de modo automatizado, ou pelo fato de confessar que em seus três primeiros livros a poesia ainda se manifestava como um desabafo, como expressão de sentimento, e não como construções programadas, Bandeira reconhece essa divisão em um antes e um depois de Libertinagem, de um período de inocência, em que o fazer poético tinha algo de acidental, e de um depois em que alcança uma afinação poética plena:

A mim me parece bastante evidente que O ritmo Dissoluto é um livro de transição entre dois momentos da minha poesia. Transição para quê? Para a afinação poética dentro da qual cheguei, tanto no verso-livre como nos versos metrificados e rimados, isso do ponto de vista da forma; e na expressão das minhas ideias e dos meus sentimentos, do ponto de vista do fundo, à completa liberdade de movimentos, liberdade de que cheguei a abusar no livro seguinte, a que por isso mesmo chamei Libertinagem. (BANDEIRA, 1984, p. 75).

De fato, em Libertinagem o excesso é algo deliberado, a premência pela experimentação fica evidente na forma como o poeta evita as rimas, até mesmo as ocasionais. Além da predominância da temática popular, na quebra do tema nobre e da retórica afetada. O tom narrativo, da Crônica, também comparece ao lado de um humor provocativo. Os poemas do livro foram escritos nos anos de maior força do modernismo. Mas Bandeira atribui grande parte da experimentação, bastante visível no livro, ao “espírito do grupo alegre” com quem convivia na época, do que a agenda de investidas iconoclastas dos modernistas.  Manuel Bandeira dificilmente assume uma postura em que o mérito lhe seja completo, e sempre pondera creditando uma parte as circunstâncias. Porém, a intenção de livrar-se inteiramente da dicção da métrica, rima e formas fixas se evidenciam não só nos enunciados dos poemas, como também no nível da enunciação: nos jornais da época Bandeira realizava suas interessantes “traduções” para o modernismo, como esta feita deste trecho do autor de a Moreninha
Mulher, irmã, escuta-me: não ames.
Quando a teus pés um homem terno e curvo
Jurar amor, chorar pranto de sangue,
Não creias, não, mulher: ele te engana!
As lágrimas são galas da mentira
E o juramento manto da perfídia.

Que na tradução “pra caçanje”, língua dos cafajestes, fica assim:

Teresa, se algum sujeito bancar o sentimental em cima de você
E te jurar uma paixão do tamanho de um bonde
Se ele chorar
Se ele se ajoelhar
Se ele se rasgar todo
Não acredita não Teresa
É lágrima de cinema
É tapeação
Mentira
CAI FORA.

Bandeira chama esses exercícios de meras piadas. Mas parece ser uma manifestação exata da consciência de existir um antes e um depois, esclarecido pelo termo tradução: diferença de linguagem considerável ao ponto de exigir uma transposição, por mais que irônica.

 DESPIR PARA VESTIR

A poesia é a matéria, mas a matéria não é especificamente um gênero. Diríamos antes que a poesia excede constantemente o gênero e o poema. As formas fixas durante algum tempo serviram para estabilizar um sentido, e assegurar um efeito comunicativo mínimo. Pois a fixidez não se restringia só a forma, estendia-se ao conteúdo e ao tema, a poesia “até o início do século XIX, e, em parte, até depois, a poesia achava-se no âmbito de ressonância da sociedade, era esperada como um quadro idealizante de assuntos ou situações costumeiras...” (FRIEDRICH, 1978, p. 20). A poesia era um complemento salutar da sociedade e deveria nas palavras de Goethe fornecer aprazimento, alegria, plenitude harmônica e afetuosa. Já

as qualidades formais chamam-se: a significância (o conteúdo significativo) da palavra, uma “linguagem contida”, que “procede com cautela tranquila e exatidão” e escolhe cada palavra na medida justa, “sem conceitos assessórios”. Schiller Vale-se de conceitos análogos: a poesia enobrece, dá dignidade ao afeto; é “idealização de seu objeto, sem a qual deixaria de merecer seu nome”; evita “raridades” (singularidades) que contrastariam com o “idealmente universal” (FRIEDRICH, 1978, pp. 20-21)

Essa definição de poesia espelha a concepção iluminista de indivíduo: autocentrado, munido de sua razão instrumental. Algo que iria ruir no fim do século XIX, juntamente com qualquer intenção de comunicar e confortar, uma vez que, os poetas rompem com a sociedade e se exilam hermeticamente na dissonância: desistem de transmitir um sentido, em nome de um efeito. Mas esta dissonância é contingência da Modernidade. Com isso, a forma tenta condensar um Zeitgeist. Uma formação discursiva orienta em parte a preferência por determinadas construções figurativas, a coadunação praticamente inevitável entre a unidade espiritual de uma época e suas formas fixas e temáticas criam uma sensação de transparência do signo.  Isso leva a se confundir forma fixa com poesia, rima com poesia. No senso comum esta associação é em grande parte irreversível. Assim como língua e gramática são para maioria dos falantes conceitos sinônimos, quando na verdade se opõem: a gramática tenta conter a tendência para a variação da língua, normatizando-a. Cada época normativa a poesia para adequá-la a uma formação ideológica, e metonimicamente a parte formal é tomada como o todo. Mas uma formação ideológica nunca é plena, existem margens de resistência que atrai a poesia, e a partir desse ponto de resistência rasga-se, para falar com Deleuze e Guatarri (1977), linhas de fuga para fora do sentido.
Deste modo, um período histórico, com seus conjuntos de valores, traz representações estéticas que repercutem na estrutura superficial (formas fixas, rimas) e no fundo temático, estes mesmos conjuntos de valores. Com isso, o sentido imediato origina-se desta coincidência cosmológica. Logicamente essa afirmação não é nova, e poderíamos ir mais longe dizendo que isso valeria para grande parte dos produtos culturais de determinada época. Mas no caso da poesia, mesmo quando está integrada ao Zeitgeist, ela destoa, para efeito de sentido, em menor ou maior grau do fundo histórico. Pois uma das obrigações da poesia é “idealizar o seu objeto”, artificializá-lo estrategicamente no plano do enunciado para abranger e estruturar o maior número de situações. Por exemplo, um “eu” que parte de uma enunciação urbana para compor um enunciado em que se apresenta virtualmente como pastor de ovelhas.  Neste caso, essa temática mesmo destoante na relação imediata de enunciado e enunciação, é prevista, assim como as formas que a acompanham, e especificamente neste exemplo, até mesmo determinado nomes e paisagens eram recomendados e orientados pela fatura de valores vigente.
Mas a poesia depende da imprevisibilidade, e por isso sua tendência a se artificializar radicaliza-se ao ponto de não ser controlada ou orientada por uma “unidade espiritual”. No entanto, existem poetas e poemas que tendem a se integrar completamente ao fundo histórico, e na maioria das vezes desaparecem com ele. Como não separamos forma e conteúdo, dizemos que há rimas e formas fixas que estão em ressonância com essa formação discursiva (rimas instituídas), e por isso, é praticada com certa automatização, mas há rimas e formas que se recortam em dissonância ao fundo (rimas que resultam de uma busca intelectual destoante).  Para que isso fique claro, ou mesmo para que ganhe mais complexidade, iremos usar uma argumentação de Derrida feita para um contexto diferente, mas que adaptaremos para nossa discussão. Trata-se de uma passagem sobre a nudez, feita em seu O animal que logo sou:

O animal, portanto, não está nu porque ele é nu. Ele não tem o sentimento de sua nudez. Não há nudez “na natureza”. Existe apenas o sentimento, o afeto, a experiência (consciente ou inconsciente) de existir na nudez. Por ele ser nu, sem existir na nudez, o animal não se sente nem se vê nu. Assim, ele não está nu. Ao menos é o que se pensa. Para o homem seria o contrário, e o vestuário responde a uma técnica. Nós teríamos então de pensar juntos, como um mesmo “tema”, o pudor e a técnica. E o mal e a história, e o trabalho, e tantas outras coisas que o acompanham. O homem seria o único a inventar-se uma vestimenta para esconder seu sexo. Só seria homem ao torna-se capaz de nudez, ou seja, pudico, ao saber-se pudico porque não está mais nu. (DERRIDA, 2002, pp. 17-18)

O animal não é nu porque sempre esteve nu, não existe a possibilidade de se despir: uma consciência da não nudez, uma distinção entre um antes e um depois, levaria a um evento de escolher entre uma situação e outra, e de agregar valor a cada um dos estados: nudez e não nudez.  Quando trazemos para o nosso contexto dizemos que existe uma rima instituída em um plano no qual a “não-rima” nunca é prevista, por isso, usa-se a rima sem saber do seu antes e sem vislumbrar um depois. A rima se torna, falaremos a partir de agora englobando as formas fixas, a via exclusiva para o poema, antes mesmo de este ser julgado como provedor de poesia. Assim, neste ambiente a rima não pode ser uma opção, ela é uma natureza inquestionável para se chegar ao poema. O poema é visto como a própria rima. O fazer poético parte de uma adesão inconsciente e estagnada.  Este plano de fundo estático e estagnado seria a nudez nunca vestida com outra possibilidade.  Somente o investimento de uma técnica não-prevista poderia fazer um corte de um antes e depois, que faria da rima um produto deliberativo, e não apenas imperativo. Lembremos o exemplo por nós na primeira parte do artigo: Manuel Bandeira exercitava as rimas apenas como algo dado, seu poder de decisão se restringia em seguir as rimas dadas por Camões e as rimas dadas pelo sistema Parnasiano, sua decisão girava apenas no campo restrito de uma autoria mínima, e nunca alcançava o não-dado.   
Com o livro Libertinagem Manuel Bandeira desvestiu a pele estagnada e estática da rima instituída, experimentou a não-rima, estabeleceu zonas de valor entre um antes e depois, ou um sim e um não, ou melhor ainda: quando melhor sim e quando melhor não. O poema não é mais apenas a rima, ele pode ser a ausência de qualquer rima. Rimar passa ser uma decisão que atende a um efeito poético. O modernismo e a modernidade na poesia instauraram a não-rima como um fundo recomendado, e seguindo a lógica do superego invertido, rimar passou a ser o destoante, isso talvez explique parcialmente a volta da rima nesse contexto “pós-tudo-mudo”.
Do itinerário retomemos na memória a passagem que Bandeira fala que teve mais dificuldade para compor fora do metro e da rima, pois alguns versos já saíam redondos, rimados e metrificados. Mas ao tentar fazer os seus primeiros versos-livres se deparou com dilemas que não conseguiu resolver prontamente, exigindo menos automatismo. Com isso, escrever sob o regime da rima instituída pressupõe ter uma parte do poema fornecido por convenção: o “não uso de hiato entre uma dicção e outra”, o “não uso de rimas no particípio”, e o principal: o “sempre uso de rimas e formas fixas”. Isso em grande parte influencia no poema e no gênero, a poesia está na matéria que faz parte do poema, mas a matéria nunca precisará ser um tipo de poema para ser poesia.  As “emendas” analisadas por Manuel Bandeira que reproduzimos no Itinerário esclarecem essa proposição, pois radicalmente Bandeira afirma que em um dístico existe poesia e no outro não. Ora, os dois dísticos são versões diferentes de um texto, considerados poemas pertencentes à mesma forma fixa e ao mesmo esquema de rimas, mas uma simples mudança na matéria, umas palavras por outras, foi suficiente para o juízo categórico de Bandeira (1984): “com esta diferença capital: no segundo verso há poesia, no primeiro não” (p.32). Poemas escritos em formas fixas e em regime de rima instituída deixam menos espaço e liberdade para se trabalhar a matéria: menos espaço para a imprevisibilidade.
Assim, a poesia é uma entidade amorfa, que depende provisoriamente de uma forma, pois neste sentido amorfa não significa ausência de forma, mas a garantia inicial de sua indefinição.  Ou como diria Jean-Luc Nancy (2005): “a poesia não coincide consigo mesma: talvez seja essa não-coincidência, essa impropriedade substancial, aquilo que faz propriamente a poesia” (p.11). A impropriedade substancial se aguça no contexto não instituído do fazer poético, pois o percurso será menos programado, e entendendo que a poesia não é um espírito suspenso no ar, este percurso, o processo, é a própria poesia.  

 O CORPO DA MORTE

A não determinação de um poema por uma forma fixa incentiva um movimento de iconicidade: o conceito se desenha visualmente no próprio poema, as palavras tendem a reproduzir na materialidade linguística o evento. Vejamos dois poemas de Manuel Bandeira sobre o mesmo tema, a Morte, mas com tratamentos formais diferentes. Os poemas são “A morte absoluta” e “Canção para minha Morte”, o primeiro publicado em Lira dos Cinquenta Anos e o segundo em Estrela da Tarde. No primeiro poema não temos nenhuma adesão a uma forma fixa ou rima, ou seja, nenhuma parte do poema é adiantada por convenção, e o poeta tira proveito disso escolhendo um verso curto, constituído apenas pelo verbo “morrer”.

Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente
.
           Logo a morte absoluta anunciada no título começa a se materializar: o verbo intransitivo é seguido de um ponto, que encerra ainda mais a intransitividade, e também qualquer expectativa de transcendência, aliás, as locuções do segundo verso delimitam a morte no biológico e no espiritual, e o advérbio de modo posto secamente e também pontuado, serve como uma pá de cal. Uma vez morto o corpo e a alma restam apenas os rituais e os despojos físicos:
 Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão - felizes! - num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.
O verbo morrer se repete mais uma vez e se repetirá no inicio de todas as estrofes, como se eu lírico soubesse que há diversas formas de sobrevida, que precisam ser atacadas e vencidas. Os versos são mais longos porque começam a se ocupar em degradar os componentes materiais de uma última presença: o corpo frio no caixão, as flores que metonimicamente anunciam o destino da carne. Em seguida, a degradação se completa, porque além da degradação sob a terra, o eu também ambiciona a sobre a terra:
Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.

O primeiro verso se alonga livremente e a reticência pontua uma vontade de ir além, como se fosse a própria caminhada interrompida com as perguntas descrentes e retóricas. Na estrofe seguinte as marcas mnemônicas que possam permanecer são gradativamente eliminadas com a repetição do pronome indefinido e excludente, que tenta varrer a imortalidade mantida pela afetividade dos que ficam.  Enfim, apagados os traços físicos e mnemônicos só falta eliminar o último traço de uma existência:  
Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."

Morrer mais completamente ainda,
- Sem deixar sequer esse nome.
 
Nos últimos versos temos a intransitividade verbal amplificada ainda mais com o uso de advérbios de intensidade e grau, e em três versos narrativos o “eu” esclarece o que seria essa morte “tão” plena: a histórica. O desejo de seu nome se tornar um significante opaco, apenas uma mera sequencia mineral sem conotação. Com isso, vemos o poema conceituar uma morte sem mistificação, sem transcendentalismos, que é desenhada iconicamente na superfície do poema, que tem uma matéria linguística descarnada, na qual as palavras resistem à figuração, os recursos metafóricos são recusados em detrimento de recursos metonímicos e gradativos, conseguindo corporificar uma morte que seja apenas uma desintegração biológica do corpo e um apagamento histórico do indivíduo e do sujeito.  Prova disso é que a morte não aparece no decorrer do poema como substantivo, mas apenas como um ato, uma ação intransitiva.
Já no segundo poema temos a opção por uma forma fixa indicada no próprio título “Canção para minha Morte”, a canção é um gênero bastante popular e isso não passou despercebido:

Bem que filho do Norte,
Não sou bravo nem forte.
Mas, como a vida amei,
Quero te amar, ó morte,
- Minha morte, pesar
Que não te escolherei

A primeira estrofe começa como tivesse ponderando uma fala anterior “bem que” poderia ser forma abreviada do termo “se bem que”, algo que nos parece confirmado pela preferência por “pesar” em vez de “apesar”. Este “bem que” poderia está secundando a uma voz da tradição popular, e essa tradição apresenta-se como se fosse a própria rima “forte/norte”. Sabemos que os ditados ganham mais força quando estão rimados, e contra essa força de verdade da rima que o “eu” se nega: “não sou não nem bravo nem forte, apesar de ser filho do norte”. Em seguida a morte é apresentada como sua interlocutora por meio do pronome “te”, então vemos a primeira marca de personificação dela. E o diálogo prossegue:

Do amor tive na vida
Quanto amor pode dar:
Amei, não sendo amado,
E sendo amado, amei.
Morte, em ti quero agora
Esquecer que na vida
Não fiz senão amar.
Aqui nesta estrofe o “eu” tenta fazer um jogo de ideias que lembra também cantigas populares, o recurso é feito pela repetição e inversão de frases “Amei, não sendo amado/sendo amado, amei” parece uma tentativa de transferir o sentido positivo de uma para a outra: seu amor pela vida transferido para morte, por meio da palavra. Apesar de não ter rimas próximas o ritmo acelera e diminui conforme as pausas, como que marcando um momento de euforia, seguido de uma pausa reflexiva. Na última estrofe a sonoridade é mais acentuada:

Sei que é grande maçada
Morrer, mas morrerei
- Quando fores servida
Sem maiores saudades
Desta madrasta vida,
Que todavia amei

Percebam que depois do travessão os versos, pelo recurso enjambement, formam uma fala contínua, com uma rápida pausa na vírgula. Os sons são provocados pelas rimas que não coincidem necessariamente com a grafia “Maçada/Saudade”, além das outras “servida/vida”, “morrerei/amei”.  A composição fecha-se de forma redonda. E com isso o conceito de morte desta opção formal é mais figurado, mas de uma figuração de cunho popular: a personificação da morte e da vida, como nas histórias e lendas medievais, como ocorre nos chamados até então Romances, composição em verso medieval que o própria Bandeira chega a praticar.  O tom receptivo, e as rimas atuam sobre este tom, em relação à Morte também lembra um imaginário popular medieval, que vê na morte o momento em que a sabedoria e a liberdade se materializam.
Para terminar, lembramos que os dois poemas foram escritos em um período pós-Libertinagem, ou seja, antes de iniciar os poemas havia uma liberdade maior para se trabalhar a matéria. Esse ponto de partida não delimitado por um regime de rimas-métrica-formas instituídas permitiu que o eu lírico desenhasse linguisticamente, na superfície mineral do papel, o conceito e o corpo de cada morte.   

REFERÊNCIA:

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
______ O itinerário de pasárgada. São Paulo: Record, 1984.
CANDIDO, Antonio.  Na sala de aula: cadernos de análise literária. São Paulo: Àtica, 2007.
______ O estudo analítico do poema. São Paulo: Humanitas, 1996.
DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou (a seguir). São Paulo: Editora Unesp, 2002.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1978.






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